quinta-feira, 26 de junho de 2008

Ética na Política?

Ética na Política?

Da sagrada ingenuidade dos céticos ao realismo maquiavélico

Até que ponto a política é compatível com a ética? A política pode ser eficiente se incorporar a ética? Não seria puro moralismo exigir que a política considere os valores éticos?

Quando se trata da relação entre ética e política não há respostas fáceis. Há mesmo quem considere que esta é uma falsa questão, em outras palavras, que ética e política são como a água e o vinho: não se misturam. Quem pensa assim, adota uma postura que nega qualquer vínculo da política com a moral: os fins justificam os meios.

O ‘realismo político’, ou seja, a busca de resultados a qualquer preço, subtrai os atos políticos à qualquer avaliação moral, entendendo esta como restrita à vida privada, dissociando o indivíduo do coletivo.

Esta concepção sobre a relação ética e política desconsidera que a moral também é um fator social e como tal não pode se restringir ao santuário da consciência dos indivíduos. Em outras palavras, embora a moral se manifeste pelo comportamento do indivíduo, ela expressa uma exigência da sociedade (um exemplo disso é a adoção dos diversos "códigos de ética"). Ou seja, não leva em conta que a política nega ou afirma certa moral e que, em última instância, a política também é avaliada pelo comportamento e entendimento moral das pessoas. Aliás, se a política almeja legitimidade não pode, entre outros fatores, dispensar o consenso dos cidadãos — o que pressupõe o apelo à moral.

Há também os que, ingenuamente ou não, adotam critérios moralizantes para julgar os atos políticos. Por conseguinte, condicionam a política à pureza abstrata reservada ao ‘sagrado’ espaço da consciência individual. Estes imaginam poder realizar a política apenas pelos meios puros.

O moralismo abstrato concentra a atenção na esfera da vida privada, do indivíduo. Portanto, aprisiona a política à moral intimista e subjetiva deste. Ao centrar a atenção na esfera individual, o moralista julga o governante tão-somente por suas virtudes e vícios, enfatizando suas esperanças na transformação moral dos indivíduos.

Ao agir assim reduz um problema de teor social e coletivo a um problema individual. No limite, chega à conclusão de que as questões sociais podem ser solucionadas se convencermos os indivíduos isoladamente a contribuírem, por exemplo, dividindo sua riqueza como os desafortunados.

O resultado é catastrófico: o moralista angustia-se porque a política não se enquadra nos seus valores morais individuais e termina por renunciar à própria ação política. Dessa forma, contribui objetivamente para que prevaleça outra política.

De um lado o ‘realismo político’; de outro, o moralismo absoluto. Nem tanto mar, nem tanto terra. A política e a moral, embora expressem esferas de ação e de comportamento humano específicas e distintas, são igualmente importantes para a ação humana no sentido da transformação social.

Política e moral são formas de comportamento que não se identificam (a primeira enfatiza o coletivo; a segunda o indivíduo). Nem a política pode absorver a moral, nem esta pode ser reduzida à política. Embora sejam esferas diferentes, há a necessidade de uma relação mútua que não anule as características particulares de cada uma. Portanto, nem a renúncia à política em nome da moral; nem a exclusão absoluta da política.

Mas, ainda fica a pergunta inicial: é possível a ética na política? Para uma resposta mais abrangente é preciso analisar as diferenças entre ética e moral (conceitos que usamos de forma indistinta).

Ética e moral

Em nosso cotidiano enfrentamos problemas morais e éticos. Por exemplo: devo cumprir a promessa que fiz ao meu amigo, embora venha a perceber que fazê-lo me causará prejuízos? Sempre devo dizer a verdade ou há ocasiões em que a mentira não apenas se faz necessária como será benéfica ao meu interlocutor? Devo persistir numa ação que moralmente é valorada como boa, mas cujas conseqüências práticas são extremamente prejudicais a outrem? Se cumpro ordens posso ser julgado do ponto de vista moral? Se meu amigo colabora com o inimigo devo denunciá-lo?

A questão ética é, portanto, uma questão prática que extrapola a política — no sentido restrito da política institucional. É interessante como se exige ética na política e, muitas vezes, no âmbito da vida privada, procedemos de forma anti-ética. Aliás, determinados casos políticos onde se alardeia a exigência da ética, nada tem a ver com esta: são, em suma, meros casos de polícia.

Esta relação direta com a realidade dos indivíduos contribui para o entendimento comum que assemelha ética à moral e toma uma pela outra. Um bom exemplo desta confusão conceitual está na expressão já consolidada no vocabulário as diversas profissões: os códigos de ética. Na verdade são normas, regras procedimentos, que configuram, digamos, um código de moral. Observemos que mesmos os partidos políticos têm os seus códigos de ética!

Ética tem origem no grego ethos, que significa modo de ser. A palavra moral vem do latim mos ou mores, ou seja, costume ou costumes. A primeira é uma ciência sobre o comportamento moral dos homens em sociedade e está relacionada à Filosofia, isto é, pergunta-se sobre a fundamentação última das questões. Sua função é a mesma de qualquer teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. A segunda, como define o filósofo VÁZQUEZ (1992), expressa "um conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual dos homens".

O campo da ética é diferente da moral: enquanto tal não lhe cabe formular juízo valorativo, mas sim explicar as razões e proporcionar a reflexão. A moral pressupõe regras de ação e imperativos materializados em realidades históricas concretas. A moral antecede à própria ética, é normativa e se manifesta concretamente nas diferentes sociedades enquanto resposta às suas necessidades. Sua função consiste precisamente me regulamentar as relações entre os indivíduos e entre estes e a comunidade, contribuindo para a estabilidade da ordem social.

A moral não é natural. Pelo contrário, resulta da ação do homem enquanto ser social, histórico e prático. Como fato histórico, a moral corresponde aos diversos estágios da evolução da humanidade. A ética acompanha este desenvolvimento sem se reduzir à moral. No entanto, ambas se confundem porque a ética parte de situações concretas, isto é, dos fatos e conseqüentemente da existência da moral.

Explicitado as relações e diferenças entre ética e moral, retomemos o fio da meada: é possível a ética na política? Se seguirmos o itinerário da política, dos gregos à modernidade, verificaremos que não há resposta simples nem única. De um lado, a exigência da ética enquanto componente da política expressa o desejo da sua moralização. Como a moral é essencialmente uma forma de comportamento relacionada com a consciência individual, seus critérios chocam-se com a esfera da política enquanto atividade coletiva. A política pressupõe ainda confrontos e conflitos entre interesses de grupos opostos e antagônicos, o que potencializa ainda mais o choque com os imperativos morais do indivíduo.

Na política não é apenas o interesse individual que está em jogo, mas também os interesses de grupos e coletivos expressados pelas ações dos indivíduos. É verdade que muitas vezes aquilo que aparece como algo pertinente à coletividade, de fato mascara o interesse pessoal e carreirista do político que pede seu voto e que faz o discurso do bem comum.

Mas, mesmo este político está preso aos interesses dos grupos que financiam sua eleição e, de certa forma, precisa mediatizar seu interesse egoísta com aquele do grupo social do qual faz parte ou do qual depende financeiramente para dar vôos políticos mais altos. Além do mais, nem que se resuma à mera retórica, ele necessita aparentar ser o que não é: um defensor dos anseios coletivos, do bem-estar social da coletividade.

Por outro lado, a moralização da política recoloca uma antiga problemática: a relação entre o público e o privado. Foram os gregos na antigüidade que inventaram o espaço da política enquanto expressão da vontade coletiva, isto é, enquanto esfera da ação humana que submete a vontade arbitrária e privada do poder pessoal do governante às instituições públicas. Dessa forma, cunharam a distinção entre a autoridade pública — expressão do coletivo — e autoridade privada — identificada com o déspota, o chefe de família. A condição da política é justamente a ausência do despotismo.

Os fins justificam os meios?

Com Maquiavel a política atinge a maioridade e é concebida enquanto esfera autônoma da vida social. A política deixa de ser pensada a partir da ética e da religião. Neste sentido, Maquiavel representa uma dupla ruptura: com os clássicos da antiguidade greco-romana e com os valores cristãos medievais. A política deixa de ser pensada apenas no contexto da filosofia e se constitui enquanto um campo de estudo independente, com regras e dinâmica livres de considerações privadas, morais, filosóficas ou religiosas.

Em Maquiavel, a política identifica-se com o espaço do poder, enquanto atividade que na qual se assenta a existência coletiva e que tem prioridade sobre as demais esferas da vida humana. A política funde-se com a realidade objetiva, com os problemas concretos das relações entre os homens: deixa de ser prescritiva — em torno de uma abstração moral e ideal — e passa a ser vista como uma técnica, com leis próprias, atinente ao cotidiano dos indivíduos.

Para Maquiavel a política deve se preocupar com as coisas como são, em toda sua crueza, e não com as coisas como deveriam ser, com todo o moralismo que lhe é subjacente. Ao libertar a política da moral religiosa, Maquiavel explicitou seu caráter terreno e transformou-a em algo passível de ser assimilado pelos comuns dos mortais.

Isto teve um preço. Não por acaso seu nome virou adjetivo de coisa má. Maquiavelismo virou sinônimo de uma prática política desprovida de moral e de boa fé, um procedimento astucioso e velhaco. De fato, o florentino nada mais fez do que demonstrar a hipocrisia da moral da sua época, isto é, mostrar como, por trás de uma moralidade que justificava a dominação dos senhores feudais e da senhora feudal, a Igreja Católica, a política era cruel e friamente praticada através de meios nada cristãos: traições, assassinatos, guerras etc.

A política explicitada e descrita em sua obra com dezenas de exemplos retirados da história mais se assemelha ao inferno dantesco do que ao paraíso prometido aos pobres camponeses, desde é claro, que eles se conformassem com a exploração e a situação de miséria em que viviam. Ontem como hoje a recompensa ao conformismo está no pós-morte, no além.

Maquiavel não introduziu as práticas amorais na política. A despeito de toda a moralidade, o ‘maquiavelismo’ que lhe imputam já se fazia presente antes dele escrever sua obra mais polêmica: O Príncipe. Quem ler este livro sem levar em consideração e estudar minuciosamente o contexto histórico no qual ele escreveu, não aprenderá nem fará justiça ao seu autor.

Com Maquiavel cai por terra a falácia da política enquanto busca da justiça, do bem comum etc. A fraseologia cristã-medieval fundada na moral religiosa mascara o fundamento da política e do Estado: a manutenção do poder político em torno das classes dirigentes em cada época histórica. Conquistar e manter o poder: eis em síntese a finalidade essencial da política. É neste sentido que Maquiavel cunha sua famosa e mais polêmica frase: "Os fins justificam os meios”.

Muito já foi dito e escrito sobre esta assertiva. E ela permanece atual. Em primeiro lugar, é difícil não reconhecer que há uma relação entre fins e meios. Como diria um revolucionário russo: "É preciso semear um grão de trigo se se quiser obter uma espiga de trigo".

Há uma relação dialética entre fins e meios, no sentido de que há uma interdependência entre ambos. O problema é o que a afirmação maquiaveliana encerra em si: o que se pode e o que não se pode fazer para atingir determinado fim? Se o fim é justo, todos os meios justificam-se?

Esta questão não pode ser satisfatoriamente respondida sem equacionarmos outra que se coloca a priori: o que justifica o fim? Ora, a realidade social na qual vivemos está longe de assemelhar-se ao paraíso ou à harmonia positivista da ordem e progresso. A ordem se mantém a ferro e fogo, isto é, a partir da ocultação ideológica das relações e mecanismos de exploração e pelo uso do aparato repressivo estatal, sempre que se faz necessário.

Por outro lado, este século, se pensarmos filosoficamente e não apenas do ponto de vista tecnológico, enterrou a ilusão positivista — mas também iluminista e a leitura evolucionista marxista — de que a humanidade marcharia sempre numa direção progressista. Duas guerras mundiais, o nazismo, o fascismo, o stalinismo, as ditaduras de esquerda e de direita etc., negam qualquer idéia no sentido de uma evolução linear positiva.

Mesmo de um ponto de vista essencialmente capitalista, o progresso é um fracasso pois que toda a riqueza produzida com o desenvolvimento tecnológico está concentrada cada vez mais em mãos de poucos, aumentando o fosso entre ricos e pobres — e não precisa ser marxista para verificar que a miséria aumenta no mundo, que a desigualdade cresce e que as mazelas sociais atingem até mesmo os países mais poderosos.

Assim, a questão dos fins está relacionada à questão política-social. Porém, se entendemos a política enquanto conflitos de interesses entre grupos e classes sociais, a justificação dos fins diz respeito às opções que fazemos quanto ao projeto político. Evidentemente adotar uma ou outra opção justificará este ou aquele fim. Numa sociedade onde impera a desigualdade e as relações de dominação e exploração entre as classes e grupos sociais, os fins não são universais, como também não o é a moral.

Justificado o fim pelo projeto social que assumimos, podemos então discutir se os fins justificam os meios. Há uma tradição, que começa com o próprio Maquiavel, que responde afirmativamente (quanto a este é preciso esclarecer que ele se refere ao Estado e não aos procedimentos morais individuais). Se pensarmos na ação política concreta seria ingenuidade, própria de um moralismo abstrato desligado de contextos históricos concretos, imaginarmos que tanto a direita quanto a esquerda não justificou os meios utilizados pelo fim perseguido.

Esta análise nos coloca diante de problemas concretos. Partindo do pressuposto que os fins buscados são diferentes, pode a direita e a esquerda utilizar os mesmos meios? Quem luta pela liberdade pode usar recursos ditatoriais, repressivos? Quem respeita a vida humana pode adotar procedimentos de tortura assassinatos etc., em nome do objetivo político? O que diferencia uma ditadura de esquerda de outra de direita? O terrorista que luta pela liberdade de seu país justifica os meios que utiliza e que, invariavelmente, vitima inocentes?

Os fins justificam os meios, é verdade. Mas apenas na medida em que estes meios não entram em contradição com os fins almejados. Quer dizer, nem tudo é permitido! Só é aceitável aquilo que contribui para que se atinja o fim e que não represente a negação deste. Toda a experiência do ‘socialismo real’ expressa a comprovação histórica de que não basta proclamar certos fins — por mais justos que sejam — é preciso encontrar os meios adequados.

Não se constrói uma nova sociedade utilizando-se os mesmos recursos predominantes na velha estrutura social. Os marinheiros de Kronstadt, os camponeses da Ucrânia e os trabalhadores oprimidos por um Estado e um partido que governou ditatorialmente em seu nome que o digam. Neste caso, os fins já são outros e muito diferentes dos enunciados. Dialeticamente, os meios também mudaram e justificam-se pelos fins ora em pauta. Maquiavel tinha razão...













Balzac e Maquiavel: Curso de História e Moral para Uso dos Ambiciosos

"O sucesso é a razão suprema de todas as ações, quaisquer que sejam elas. O fato não é pois mais nada por si mesmo, consiste inteiramente na idéia que os outros formam a seu respeito". (Honoré de Balzac)

A ambição, define o Aurélio, é o desejo veemente de alcançar aquilo que valoriza os bens materiais ou o amor-próprio (poder, glória, riqueza, posição social, etc.); exprime um desejo ardente de alcançar um objetivo de ordem superior. Na tradição judaica-cristã, a sofreguidão em possuir bens materiais ou mesmo o intenso desejo carnal pela mulher se inscreve entre os maiores pecados que o ser humano pode cometer:

Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás sua mulher, seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo”.(Ex. 20,17)

Todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério”.(Mt., 5, 28)

Vivemos numa sociedade onde prevalece desejo ardoroso de consumir bens materiais e simbólicos. A todo momento somos estimulados a querer algo, possuí-lo. Os padrões sociais são balizados pela ostentação, pela indumentária, por aquilo que temos. Vivemos numa sociedade do TER, na qual o SER encontra-se asfixiado. A sociedade não perdoa a ingenuidade dos que não fazem um bom curso de ambição. Os vencedores são os que tiram as maiores notas.

O consumismo e a erotização são faces da mesma moeda. As mercadorias substituem as relações entre as pessoas: não só estas são tratadas como mercadorias – que podem, portanto, serem compradas, vendidas trocadas etc., conforme o poder econômico – como, as próprias mercadorias assumem características humanas.

Que me perdoem os cristãos antigos e novos, mas numa sociedade que excita diuturnamente seus membros a consumirem e verter erotismo, é impossível não transgredir a lei sagrada. Do jeito que vai, o anjo rebelde reivindicará uma reforma da lei ou o seu reino ficará diminuto para tantas almas cujos corpos desejam outros corpos e vêem em máquinas e outros objetos a personificação dos corpos cobiçados.

Mas, deixemos tema tão escabroso de lado e voltemos à ambição. Honoré de Balzac, em Ilusões perdidas (1978), desenvolve uma crítica corrosiva do autor de O Príncipe. Os personagens balzaquianos, o ambicioso Luciano e o maquiavélico cônego, travam um diálogo muito instrutivo. Começa o padre ensinando-nos que há sempre duas histórias: a oficial e a que se ensina ad usum Delfhini, ou seja, a mentirosa; a historia expurgada dos textos que possam confundir a mente, portanto, impróprias para o uso do filho do rei, o Delfim.

A história ensinada nas escolas, ontem como hoje, é, em geral, uma coleção de datas e fatos, que nada esclarece sobre as verdadeiras e vergonhosas causas dos acontecimentos. De que nos serve saber que Joana d’Arc existiu?, pergunta o cônego. De que nos serve conhecer os resultados das ações dos grandes homens e mulheres se não conhecermos os meios que utilizaram? Vejamos, a título de ilustração, um trecho deste elucidativo diálogo:

Não estudou os meios pelos quais os Médicis, de simples negociantes, chegaram a grão-duques de Toscana?

Um poeta, na França, não tem obrigação de ser um beneditino – disse Luciano.

Pois bem, meu jovem, eles se tornaram grão-duques como Richelieu se tornou ministro. Se tivesse procurado na história as causas humanas dos acontecimentos, em vez de aprender-lhes de cor as etiquetas, o senhor obteria preceitos para a sua conduta. De que acabo de tomar ao acaso na coleção de fatos verdadeiros, resulta a seguinte lei: Não veja nos homens, e principalmente nas mulheres, senão instrumentos; mas não deixem que eles o percebam. Adore como ao próprio Deus aquele que, colocado acima do senhor, lhe pode ser útil, e não o abandone até que ele lhe tenha pago bem caro a sua servidão. No comércio do mundo, seja em suma, duro como o judeu e vil como ele: faça pelo poder o que faz ele pelo dinheiro. Mas também, preocupe-se tanto com o homem que caiu como se ele jamais tivesse existido. Sabe por que deve proceder assim?... O senhor quer dominar o mundo, não é? Pois é preciso começar por obedecer ao mundo e estudá-lo bem. Os sábios estudam os livros, os políticos estudam os homens, seus interesses, as causas geradoras dos seus interesses, as causas geradoras de suas ações. Ora, o mundo, a sociedade, os homens tomados em seu conjunto são fatalistas: eles adoram o acontecimento. Não sabe por que lhe faço esse pequeno curso de história? É que o julgo de uma ambição desmedida...

Sim, meu padre!

Neste diálogo, o cônego balzaquiano assume-se como discípulo de Maquiavel. Neste caso, o nome do florentino adjetiva a atitude dos que pautam sua vida pela cobiça, sem preocupação com qualquer fogo sobrenatural. Luciano, o ambicioso fracassado, é criticado por ter sido humano demais, isto é, por ter deixado que seus sentimentos atrapalhassem sua ascensão, por ter sucumbido ao moralismo. Seu pecado não foi ambicionar, mas não fazê-lo com a devida intensidade.

Em Ilusões perdidas, maquiavelismo tem significação pejorativa. Como nos ensina o Aurélio, esta palavra também expressa uma atitude política desprovida de boa-fé, um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, dissimulador. Numa palavra: maquiavélico.

Balzac reafirma o mito do judeu rico e o que poderíamos denominar tipo ideal weberiano do avarento, tão bem representado pelo Pai Grandet noutra de suas obras magistrais: Eugénie de Grandet. Recordemos este autor clássico escreve no século XIX, quando o espírito burguês encanta a sociedade mercantilizando as relações humanas. Mas é diferente na atualidade?

A Moral

Não há moral. O que determina o bem e o mal é o resultado. Seja vitorioso, torne-se poderoso, rico etc.e todos os seus atos desonrosos serão esquecidos. O importante não é a prática ou o que você é, mais a imagem que fazem da sua pessoa. "Esconda o avesso da sua vida", afirma o padre, personagem balzaquiano, ao ambicioso Luciano.

Mesmo que você não se suporte diante do espelho – material e/ou da sua consciência - mostre-se belo para o exterior. Discrição: eis a palavra chave; ou como diremos nos meios políticos, a palavra-de-ordem do ambicioso. Adote-a como sua, ensina-nos o sacerdote. E, para que não fiquem dúvidas, vejamos seu argumento:

"Os grandes cometem tantas covardias como os miseráveis; mas cometem-nas na sombra e fazem ostentação das suas virtudes: permanecem grandes. Os pobres exercem suas virtudes na sombra e expõem suas misérias ao sol: são desprezados”.

Seja verdadeiro e sincero, mostre-se como você é e será ridicularizado e desprezado. Aparente ser o que você não é; atue na escuridão e não deixe que a luz seja suficiente para tornar a obscuridade do seu ser inteligível ao outro e você será respeitado, elogiado e bajulado. Tudo reside na fórmula: dissimule.

Balzac revela os desígnios ocultos em relação ao mito da moral e da virtuosidade da justiça. O que é moralmente condenável e justo? Acaso o ladrão é mais culpado do que o indivíduo que, por irresponsabilidade política e administrativa, atira na miséria dezenas e centenas de famílias? Será o governante cuja política econômica aprofunda a exclusão social e favorece os que vivem na sombra menos culpado que o ladrão que rouba um indivíduo ou uma família?

"Os juízes, condenando o ladrão, mantém a barreira entre pobres e ricos", afirma Balzac. Na verdade, os grandes roubos - como os escândalos que pipocam por este país - tendem a ser acobertados porque expressam apenas deslocamentos de fortunas. Há a privatização do dinheiro público – aliás, esta não é a palavra da moda? A estratégia é abafar um escândalo com um novo escândalo. Agora, por exemplo, o foco desloca-se do executivo para o legislativo.Transferem-se fortunas de forma lícita – dentro das normas legais - ou por maneiras ilícitas. O efeito é o mesmo: deslocamento de fortunas. As fraudes, os grandes roubos etc., não colocam a sociedade em risco. Envolve gente graúda, tubarões. Os bagrinhos têm que garantir a sobrevivência, não têm tempo e condições para se preocupar com a dilapidação do bem público. Acompanham estarrecidos. Comentam entre os seus e ironizam: por que fulano depositou dinheiro na conta de tanta gente e esqueceu de mim?! Uma minoria se organiza e tenta influir sobre a maioria para colocá-la em movimento contra este estado de coisas. Mas, não é fácil.

O modelo que prevalece é o dos que tem sucesso e... propriedades. Enriquecer! Este é o grito de guerra de todas as torcidas. Feito isso, pode-se permitir o "luxo da honra”.Só quem ousa pode atingir o topo. E ousar é saber usar os meios certos nos momentos adequados.

Maquiavel diria que o príncipe deve saber usar os vícios e as virtudes, a bondade e a maldade, a paz e a violência: é preciso ser ter a força do leão e a astúcia da raposa: saber agir como homem e como animal. O padre balzaquiano, que é maquiavélico, diz que devemos agir como o jogador: saber dissimular e esconder o jogo. O jogador que é franco é um péssimo jogador: só perderá. O exímio jogador "não somente oculta o seu jogo, mais ainda trata de dar a entender, quando está certo de ganhar, que vai perder”.O segredo é a lei suprema: é imprescindível ocultar os meios.

Os fins justificam os meios! Quanto maquiavelismo nesta frase pronunciada há séculos sem qualquer referência com o contexto histórico em que foi escrita - e, na maioria dos casos, descontextualizada em relação à totalidade da obra. Não deve nos surpreender o fato de maquiavelismo e maquiavélico terem adquirido o status de adjetivo e substantivo. O Aurélio define-os como a "política desprovida de boa-fé, procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro; velhacaria, perfídia".

Pode realmente haver boa-fé na política? A exemplo do ambicioso balzaquiano, o objetivo do político não é o sucesso? Também ele não é avaliado pelos resultados? O político deve observar a moral ou agir como o jogador?

Uma rápida leitura de O Príncipe, modelo para os ambiciosos de todo parece comprovar a analogia. Mas, de qual ambição nos fala Maquiavel: do indivíduo que almeja a riqueza ou mesmo o poder para o deleite pessoal ou aquela ambição que move os homens mais ilustres na história humana, indivíduos que almejam construir algo que transcenda a finitude da vida? No contexto do renascimento italiano, esse ente duradouro que sobrevive ao seu criador e é legado às gerações futuras, é o Estado. O objetivo de Maquiavel é o estabelecimento de um poder capaz de garantir a ordem social.

A política e a moral pertencem a domínios diferentes da práxis humana. O sujeito da política é a coletividade, a Pólis. Na esfera da ação política o que importa é a certeza, os efeitos e a fecundidade dos resultados. O criador de cidades terrenas, condutor de homens e do Estado, é julgado pelo sucesso ou fracasso e não por considerações morais cristãs. Seu lema é: fazer o que é necessário, a fim de aconteça o que se objetiva. Sua ética é a da responsabilidade - como definiria Max Weber.

O sujeito da moral é o indivíduo. Sua ética é a do dever pela convicção. A moral individual adota como preceito fazer o que deve ser feito, independente do que possa acontecer. Pouco lhe importa as conseqüências dos seus atos, os resultados: o essencial é a certeza do dever cumprido. O que vale é a pureza das intenções, o que pressupõe a coerência entre a intenção e a ação. Ages com justiça e deixa o resto nas mãos de Deus. Na esfera individual a moral cristã apresenta-se como própria do homem de fé, do sábio profeta, cujos olhos estão postos na cidade celeste. Porém, os homens não são anjos celestiais e a política, enquanto esfera de ação coletiva, é o reino terreno de interesses genuínos e espúrios.

Pode o condutor de homens e construtor do Estado pautar suas ações pela ética da convicção? Os antigos falavam em bem comum, bom governo, justiça, etc. Outros, como Thomas More, em Utopia, imaginaram sociedades onde o homem finalmente alcançaria a felicidade. Expressam uma concepção política prescritiva destituída de vínculos com a realidade nua e fria. Há muito que os reis e governantes deixaram de ser avaliados por suas virtudes e/ou vícios, mas por sua eficácia – Ricardo II, de Shakespeare, é uma bela ilustração desta forma de julgar o governante.

A política pauta-se por interesses conflituosos e antagônicos concretos e pela ação de homens de carne e osso. Sua moralidade não é a do dever pelo dever. Aquilo que é visto como imoralidade é, na verdade, uma inversão do moralismo sacrossanto: o que move a política é busca de resultados concretos e não imaginários (embora a imaginação também cumpra um papel importante, principalmente quando codificada em Ideologia).

Balzac e outros anti-maquiavélicos invertem Maquiavel: traz para a arena do privado o que foi pensado tendo como referência uma entidade superior aos indivíduos - e mesmo ao governante. A perspectiva de Maquiavel é histórica pois é balizada pela necessidade da constituição do Estado que, nas condições do seu tempo, significava a unificação da Itália. Ora, esta é uma tarefa gigantesca, acima das forças de homens normais e de quaisquer considerações de cunho moralista.

O príncipe capaz de dar cabo desta tarefa pode tudo? Ele pode usar do bem e do mal, dos vícios e das virtudes e da violência conforme considerar necessário. Contudo, há limites: não abusar dos direitos dos súditos, garantir a segurança e a estabilidade, não ser odiado pelo povo - embora seja prudente ser temido. Se o príncipe colocar suas ambições pessoais acima do Estado, poderá ficar em maus lençóis. A ambição do príncipe não é a que se reduz à mesquinhez do indivíduo privado: ele é o criador e provedor de instituições.

Se há um bem para Maquiavel, este diz respeito ao estabelecimento da ordem temporal. Maquiavel foi um ambicioso à maneira do que hoje chamamos de cidadão - construtor e mantenedor do Estado. Sua ambição maior era servir à república de Florença e contribuir para a unificação da Itália - não por acaso será reabilitado pelos italianos no século XIX. Também não é um acaso que ele tenha morrido pobre e desprezado pelos políticos da sua época.

Maquiavel era bastante pessimista quanto à natureza humana:

"Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a penar, entre tantos que não são bons. É necessário. Portanto, que o príncipe que deseja manter-se aprenda a agir sem bondade, faculdade que usará ou não, e cada caso, conforme necessário”.(O Príncipe, cap. XV)

Se somos ambiciosos por natureza - o homem lobo do homem, como diria Hobbes -, é preciso um poder que garanta a ordem social. Este poder é o Estado: principado ou república em Maquiavel; Leviatã em Hobbes. Num e noutro caso, a estabilidade da ordem social é mantida. Hoje, essa ordem é a dos privilégios, a que protege os campeões em ambição, a que faculta as condições para os deslocamentos das fortunas.

De qualquer forma, não culpemos Maquiavel pelos ambiciosos do nosso tempo. Pois, se como escreveu Balzac no século XIX, "a nossa sociedade não mais adora o verdadeiro Deus, mas o bezerro de ouro", ou seja, se a "política só leva em conta a propriedade", a culpa não é do florentino.

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